A proposta, que limita os gastos do governo, foi
aprovada em uma primeira votação na Câmara dos Deputados. Se passar, vai mudar
as regras para financiamento da Saúde no Brasil. Entenda o que isso significa
RAFAEL CISCATI
A PEC 241 pode mudar
as regras do financiamento da Saúde. Quais os impactos da medida? (Foto:
Thinkstock)
A Câmara dos Deputados aprovou em primeira votação, na noite da última
segunda-feira (10), a Proposta de Emenda Constitucional 241 – ou a PEC
do teto de gastos. Tida como prioritária pelo governo dopresidente
Michel Temer, a medida estabelece um limite para os gastos da União –
que serão congelados em níveis de 2016 e corrigidos, ano a ano, de acordo com a
variação da inflação. A PEC precisa passar por, pelo menos, mais três votações
no Congresso. Mesmo assim, o resultado da última segunda-feira foi interpretado
como uma vitória importante para o governo, que defende a PEC como essencial
para a retomada do crescimento econômico.
>>Teto de gastos: o que a PEC 241 muda na Educação?
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Se passar, a nova regra deverá valer por dez anos, podendo ser
prorrogada por mais dez. Isso não impede também que, nesse meio-tempo, outra
PEC seja feita e mude as regras novamente. Na Câmara, a 241 passou com vantagem
– somou 366 votos favoráveis, 58 a mais do que o necessário para ser
aprovada. Os embates mais acalorados giraram em torno das mudanças na
regra de financiamento para Saúde e a Educação. São pontos sensíveis
porque, nas projeções dos críticos à medida, existe o risco de o nível
de investimento em Saúde cair a longo prazo – resultado potencialmente
trágico para uma área já subfinanciada. O governo sustenta que o risco não
existe: segundo representantes da área econômica de Temer, a Saúde será tratada
como área prioritária. Embora a PEC estabeleça um limite total de gastos, ela não
fixa limites para áreas específicas. Se achar necessário, e se tiver
recursos, o governo poderá destinar mais verba para áreas consideradas essenciais.
O debate em torno da questão é especialmente importante em tempos de crise: com
desemprego em alta, mais pessoas passam a depender do SUS para
tratar problemas de saúde. Haverá recursos para cuidar de todas essas pessoas?
>>Investimento federal em saúde deverá cair novamente em 2017
Como é hoje?
O financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) é de responsabilidade
das três esferas de governo: da União, dos estados e dos municípios. Hoje, quem
determina quanto a União vai destinar à Saúde é a Emenda Constitucional
86. Em vigor desde o começo de 2016, ela estabelece que o dinheiro
destinado pelo governo federal à Saúde é calculado com base em uma percentagem
das receitas correntes líquidas. Funciona assim: o governo federal arrecada
impostos e contribuições. A Constituição estabelece que parte dessa arrecadação
deve ser transferida para estados e municípios. O que resta é a Receita Líquida
(RCL). A EC 86 estabelece que, entre 2016 e 2020, parcela crescente da RCL
deverá ser destinada à Saúde: 13,2% em 2016 e 13,7% em 2017 – até chegar a 15%
em 2020.
>>O desespero de quem perde o plano de saúde
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Estados e municípios também devem destinar uma parcela de suas receitas
para o financiamento do SUS – os estados contribuem com, no mínimo, 12%; os
municípios, com 15%. As regras para essas esferas de governo foram
estabelecidas pela Emenda Constitucional 29, em vigor desde 2000. Esses
valores, válidos para a União e para as demais esferas, são valores
mínimos. Se os governos julgarem necessário – e se tiverem recursos – podem
destinar mais dinheiro para financiar o sistema. A regra estabelece o
piso.
>> O que é a PEC 241, uma ferramenta necessária, mas insuficiente para combater a crise
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Há dinheiro o suficiente, hoje, para financiar a
Saúde?
O Brasil conta com um sistema de saúde público e universal.
Isso significa que todo cidadão pode usar o SUS para tratar ou prevenir
doenças. Significa, também, que o SUS é responsável por cuidar da saúde da
população de maneira global: a saúde pública cuida das atividades de vigilância
sanitária e epidemiológica, por exemplo. Serviços que nos beneficiam a todos –
mesmo àqueles entre nós que contam com convênios médicos privados. Quando
comparado a outros sistemas universais, no entanto, o brasileiro recebe
pouco investimento. Em 2014, segundo os dados mais recentes daOrganização
Mundial da Saúde (OMS), o Brasil gastou US$ 947,40para custear
a saúde de cada cidadão durante o ano todo. É pouco quando comparado aos US$
3.934 que os britânicos destinaram ao setor no mesmo período. No caso
brasileiro, há um agravante:menos da metade do investimento – 46% – foi
financiado pela esfera pública. Os outros 54% correspondem a gasto
privado. O investimento público do Brasil em Saúde é baixo mesmo quando
comparado a outros países da América Latina: em 2014, o gasto público em Saúde
no Brasil correspondeu a 3,8% do PIB. No mesmo ano, a Colômbia destinou 5,4% do
PIB para a Saúde. “Se você quer garantir da vacina ao transplante, não tem como
gastar tão pouco”, diz Arthur Chioro, professor da Universidade
Federal de São Paulo, e ex-ministro da Saúde do governo Dilma.
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Especialistas em financiamento da saúde apontam que parte da explicação
para esse investimento baixo está no orçamento
apertado destinado pelo governo Federal para o setor. A estrutura
tributária brasileira foi planejada de modo que a União retenha a maior parte
dos impostos, tributos e contribuições: “A constituição brasileira é
extremamente descentralizadora nas atribuições. Mas, ao longo do tempo, houve
uma recentralização das receitas”, diz a professora Ligia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde
Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Significa que é a União
quem possui mais recursos para investir. Proporcionalmente, investe pouco.
Segundo estimativas do professor Áquila Mendes, na Faculdade de Saúde Pública
da Universidade de São Paulo, a União foi responsável por 43% dos investimentos
públicos em saúde feitos no Brasil em 2014. Os municípios, que arrecadam menos
impostos, contribuíram com 31%.
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O que muda com a PEC 241?
A proposta do governo muda como é calculado o investimento
federal mínimo em Saúde. A regra vigente diz que, em 2017, o governo
deveria destinar à Saúde 13,7% de suas receitas líquidas. A PEC 241 muda essa
lógica: em 2017, a Saúde receberá, no mínimo, 15% desse total. A partir do ano
seguinte – e pelo menos até 2026, talvez até 2036 – o valor vai variar de
acordo com a inflação. A aplicação mínima em 2018 será a mesma feita em 2017,
acrescida da inflação registrada no período. Se julgar necessário, e se tiver
recursos, o governo terá margem para aumentar o orçamento da Saúde – desde que
não ultrapasse o teto geral de gastos.
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A PEC significará menos dinheiro para a Saúde?
O governo sustenta que a mudança de regra garantirá maiores
investimentos para o setor. “No caso da Saúde, a notícia é ainda melhor”,
diz Mansueto Almeida, secretário de Acompanhamento Econômico do
governo, em um vídeo divulgado pelo Planalto para promover a medida. “O
governo, com a PEC 241, vai aumentar recursos para a Saúde.” É uma meia
verdade. Em 2017, o investimento mínimo será realmente maior do que aquele
originalmente pretendido: ao aplicar 15% da RCL, e não os 13,7% planejados pela
regra que hoje vigora, o governo garantirá cerca de R$ 10 bilhões a mais para a
Saúde – R$ 113,7 bilhões em comparação a R$ 103,9 bilhões. Os críticos da
medida veem dois problemas nessa retórica: o valor originalmente planejado para
2017 era baixo. Em 2014 e 2015, o governo destinou cerca de 15% das receitas
líquidas à Saúde. A aplicação regrediu em 2016 – para 13,2%. E continuaria
baixa no ano seguinte, se fossem mantidas as regras atuais. Em 2017, mesmo com
a aplicação de 15% prevista pela PEC, a verba destinada à Saúde será
inferior àquela aplicada em 2014. Por causa da crise econômica, a
arrecadação do governo caiu. Aplicar 15% da receita em 2017 não é o mesmo que
aplicar 15% das receitas em 2014. “Para manter o padrão de investimentos
de 2014, o governo deveria destinar cerca de R$ 119 bilhões para a
Saúde em 2017”, afirmaFrancisco Funcia, economista e consultor
técnico do Conselho Nacional da Saúde. E não os R$ 113,7 bilhões
que serão aplicados caso a PEC seja aprovada.
>>Descobrimos um jeito rápido e barato de manipular o DNA humano. Até onde devemos ir?
Há também temores quanto aos efeitos da PEC a partir de 2018, caso a receita governamental aumente (se o país voltar a crescer). Como o investimento em Saúde não estará vinculado a essas receitas, há o risco de ele não crescer no mesmo ritmo. O Conselho Nacional de Saúde calcula que, se a regra hoje existente for mantida, serão aplicados R$ 137,7 bilhões em Saúde, no mínimo, em 2020. Pelas regras da PEC 241, a aplicação mínima será de R$ 130,5. Num cenário de crescimento sustentável do país, e caso o sistema seja mantido por 20 anos, as perdas se acumularão: R$ 433,52 bilhões a menos, na projeção do Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Ou R$ 743 bilhões, nas previsões do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). Corrigir o valor mínimo pela inflação será insuficiente para garantir o nível de investimento adequado, também por outro motivo: “A inflação médica é superior à inflação comum”, diz Arthur Chioro. Outro problema é o crescimento da população, conjugado ao envelhecimento. "Somos um país que está envelhecendo, mas que ainda cresce. Com a redução dos recursos, aumentará o subfinanciamento da Saúde", afirma Gustavo Andrey Fernandes, pesquisador do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo.
>>“Receitamos remédios psiquiátricos a gente saudável”, diz o médico Allen Frances
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Há também temores quanto aos efeitos da PEC a partir de 2018, caso a receita governamental aumente (se o país voltar a crescer). Como o investimento em Saúde não estará vinculado a essas receitas, há o risco de ele não crescer no mesmo ritmo. O Conselho Nacional de Saúde calcula que, se a regra hoje existente for mantida, serão aplicados R$ 137,7 bilhões em Saúde, no mínimo, em 2020. Pelas regras da PEC 241, a aplicação mínima será de R$ 130,5. Num cenário de crescimento sustentável do país, e caso o sistema seja mantido por 20 anos, as perdas se acumularão: R$ 433,52 bilhões a menos, na projeção do Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Ou R$ 743 bilhões, nas previsões do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). Corrigir o valor mínimo pela inflação será insuficiente para garantir o nível de investimento adequado, também por outro motivo: “A inflação médica é superior à inflação comum”, diz Arthur Chioro. Outro problema é o crescimento da população, conjugado ao envelhecimento. "Somos um país que está envelhecendo, mas que ainda cresce. Com a redução dos recursos, aumentará o subfinanciamento da Saúde", afirma Gustavo Andrey Fernandes, pesquisador do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo.
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Essas projeções pessimistas são criticadas porque é difícil prever como
a receita vai se comportar pelo próximos 20 anos. “Alguém sempre critica os
parâmetros utilizados”, diz Funcia. O estudo publicado pelo Ipea foi criticado
pela própria direção do Instituto: em nota, o presidente do Ipea, Ernesto
Lozardo, disse que os autores desconsideraram os efeitos positivos da PEC,
que ao reorganizar a economia pode melhorar a arrecadação de estados e
municípios – e garantir maior investimento em Saúde por parte dessas esferas de
governo. Além de fazer projeções, o Ipea também tentou avaliar quais seriam os
efeitos do teto de gastos se ele existisse entre 2003 e 2015 –um cenário
verificável. “Se a PEC estivesse em vigor no passado, em 2015 o governo
teria aplicado R$ 70 bilhões em Saúde – e não os R$ 100 bilhões que aplicou”,
diz Funcia. O orçamento seria 30% menor.
>>Em busca de preços justos para os medicamentos
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Ainda que a PEC seja aprovada, o governo poderá destinar mais
dinheiro à Saúde do que o piso estabelecido por lei. Mas não é essa a
tradição brasileira. Um levantamento feito pelo Conselho Nacional de
Secretários Municipais de Saúde mostra que, entre 2000 e 2015, a União fez
aplicações em Saúde acima do mínimo legal somente em três ocasiões: 2013,
2014 e 2015. Se, após a aprovação da PEC, o governo mantiver essa tradição,
haverá grandes chances de faltar dinheiro.
Se faltar dinheiro, o que acontece?
Cerca de dois terços do orçamento federal para a Saúde é composto de
transferências destinadas a estados e municípios. Menos recurso federal
significa maior exigência sobre essas outras esferas de governo, que também
estão em situação financeira frágil. Por lei, os municípios brasileiros deveriam
destinar, no mínimo, 15% de suas receitas para a Saúde. Em média, as
cidades aplicam 24%. Se aumentarem esse valor, correrão o risco de
comprometer os orçamentos municipais. "A PEC vai obrigar uma
discussão que não podemos adiar mais: que SUS queremos? Se quisermos um SUS com
o nível de serviço de hoje ou melhor, teremos de concordar com um imposto como
a CPMF, que pode ser provisório, vinculado à duração da PEC", diz Paulo
Furquim, coordenador do Centro de Estudos em Negócios do Insper.
>>Nova dieta dos brasileiros mistura comida saudável e fast-food
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Com orçamentos apertados, os municípios brasileiros terão de escolher
entre tratar doentes ou investir na prevenção de enfermidades, função da
chamada atenção básica. É um dilema que a maioria deles já enfrenta. E a
tradição brasileira dá precedência ao tratamento: “As secretarias de Saúde não
têm saída. Elas têm de atender primeiro os casos graves e os casos urgentes”,
diz Nelson Rodrigues dos Santos, professor da Faculdade de Ciências
Médicas da Universidade de Campinas. “Eles vivem esse drama porque sabem que,
quanto menos resolverem os problemas da atenção básica, mais casos graves e
urgentes surgirão.”
E se a PEC não for aprovada?
Os defensores da PEC atestam que ela ajudará a pôr nos trilhos as contas
públicas – algo importante para que o país volte a crescer. Num cenário em que
a PEC não é aprovada – e se não forem encontradas alternativas para retomar o
crescimento econômico – as finanças públicas vão continuar a se deteriorar:
“Sem a PEC, com o agravamento da crise econômica, haveria perda de recursos de
qualquer maneira, mas desorganizadamente. A PEC organiza essa limitação de
recursos", afirma Maria Dolores Montoya Diaz, professora da Faculdade de
Economia e Administração da Universidade de São Paulo.
Em qualquer dos cenários, com ou sem a aprovação da PEC 241, evitar que
se escolha entre tratar e prevenir exigirá que os parlamentares, responsáveis
pela elaboração do Orçamento, tomem decisões difíceis, mas necessárias –
escolham tirar recursos de certos setores, para priorizar o investimento em
áreas essenciais, como Saúde e Educação – sabendo que contam com recursos
limitados: seja por força da lei ou das circunstâncias. E vai exigir que os
cidadãos, que os elegeram, trabalhem como fiscais capazes de dizer quais as
necessidades prioritárias para o país.
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